1) Onde tudo começou
Em Peruibe, lá pelos anos 1960, na empoeirada esquina das avenidas São João e Padre Anchieta, eu e o Moacir de Castro Moura começávamos a carregar uma placa indicando nome do filme e o episódio de uma série que o cinema do Seu Chico iria passar naquele dia.
O nome do filme era Rosemary, o primeiro musical que assisti na vida (que aliás todos os meus amigos da época detestaram) e o episódio talvez fosse do Homem Foguete, mas o que importava isso? Quase nada, pois tínhamos mesmo era que cumprir a tarefa do amigo de levar a placa até a estação, que era lida por todos os que esperavam o trem ou que dele desembarcavam. A tarefa era mais do Moacir que minha, mas aproveitando que tinha que pegar o trem todos os dias, eu acompanhava o amigo quase sempre, pois ele sim, como filho do seu Chico, era o titular daquele trabalho.
2) O elenco de artistas
Era só chegarmos com o cartaz que muita gente rodeava a placa para ler a programação do dia: Dito Pipa, Odair Castor, Guaxica, Lua Cheia, Mula Manca, Helio Borges, Cambacica, Goxo, Gumercindo Pelé, Lalau, Carlico, Waluse, Neguinho, Toninho Lourenço, Jair Mendes, Deva, Deja, Valdeci, Popola, Manequinho, José Carlos, Zé (do seu Darci e dona Conta), Lenaldo Xavier, Ildo, Orlando Castro, Manina, Leones, Zé Ricardo, Jorge Vitoriano, Vicente Malabucha, Roque Inocêncio, Paulo Cordeiro, Zuca, Gazo, Beto do Guaraú e tantos outros. Só meninos? Não, muitas meninas também, só que sem apelidos, por favor, Leonor Rossi, Rute, Vilma, minha irmã Tomiko, Rose do seu Olímpio, as inseparáveis Mércia e Clélia, Aracene, Magda.
Bem, o parágrafo anterior é uma ilusão minha, escrito apenas para homenagear e lembrar de muitos amigos da época, sem cronologia, pois a memória já está falha, pelo que peço desculpas a outros que agora momentaneamente não me lembro. Exemplo disso foram os que compartilharam os bancos escolares desde o início, com Dona Letícia (esposa do seu Itagiba, da Funai), até a Dona Nelsi, passando pelas professoras Nerucha e Jacyra, dos quais me fogem o nome.
E o trem, hein? Viajávamos todos os dias para Pedro de Toledo para cursar o ginasial que ainda não tinha dado as caras em Peruíbe.
3) A produção
Voltando à placa, carregá-la da esquina da São João com a Padre Anchieta até a estação foi uma das minhas únicas incursões no mundo da propaganda, e se isso garantia um ingresso no cinema, o esforço deste carregamento me fez desistir da área da propaganda, hoje também conhecido com marketing. Talvez o mais indicado para isso fosse o Roberto Ferreira, que foi trabalhar na área e agora curte o seu Guaraú como poucos.
4) O roteiro
Mas vamos nos fixar no cinema.
Comandado pelo seu Chico Latim, que foi, desde sempre, o maior irradiador de cultura da minha querida cidade natal, Peruibe, e foi este singelo comandante do cinema que proporcionou o contacto dos habitantes da cidade com todo o tipo de cultura existente na época, desde os dramas, as comédias, os bang bang, as histórias policiais e de terror e tantos outros tipos de filme que retratavam um modo de ser e viver totalmente diferente do nosso, mas que nos enchiam de conhecimento, pois sabíamos como se vestir se um dia fossemos visitar o velho oeste, ou que tipo de arma tínhamos que usar se fossemos policiais de cidades estrangeiras, uma delas conhecida como Nova Iorque, acho que era isso, ou então, se nos transformássemos em índios pele-vermelhas, que cavalo teríamos que usar, de preferência malhados e sem selas, é claro e muito importante, como nadar no rio infestado de crocodilos como bem fazia o Tarzã. Enfim, os filmes que o seu Chico Latim exibia nos proporcionava sonhar, imaginar, voar daquela pequena Peruibe para outros ares pelo mundo.
Um dia, muitos de nós fizemos isso, indo para São Paulo, Santos, e até para cidades americanas, algumas retratadas nos filmes, como ocorreu com o Odair Choquito e o Keko, mas com toda certeza, jamais se esquecendo de Peruibe.
5) O filme
Para quem assitiu o filme, muito antes do Cinema Paradiso, nós, de Peruíbe, tínhamos nosso Alfredo, nosso Totó, nossa Giancaldo, tal qual retratado neste brilhante filme. Acredito que só faltava a música genial do Ennio Morricone, mas aí era pedir demais. Contentávamos em ouvir as músicas tocadas no carnaval pelo Seu Álvaro, trombonista de primeira, seu Geraldo (bombardinista) e pelos demais músicos da cidade, que antecederam a famosa banda comandada pelo maestro Vicente Basile. Nesta fase, brilharam Luiz Crica (trumpete), Betinho (Sax), Fofinho (o único tocador de requinta que conheci), e outros tantos talentos musicais. Todos nós tínhamos um pouco de Totó, pois éramos fissurados e encantados pelo cinema, mas só o seu Chico era o ator principal.
Assim, o Cinema Paradiso sempre nos faz lembrar do seu Chico Latim e de Peruibe, e hoje talvez assobiando as músicas tema do senhor Morricone, lindas por sinal, temos sempre tendo em mente que Giancaldo jamais será a nossa Peruibe, pois esta é inigualável, mesmo porque aquela era uma cidade fictícia e a nossa, muito real e sempre presente em toda a nossa vida.
6) A crítica
Meus pais, conhecidos como seu Antonio Sato e dona Helena, sempre que se referiam ao seu Chico Latim e à Dona Cabocla, usavam a expressão: “se tem alguém honesto e digno por aqui, estes são seu Chico Latim e a Dona Cabocla”. Por serem os meus pais muito rígidos no quesito dignidade e honestidade, o depoimento deles retrata o que foram realmente os queridos pais da cultura de Peruíbe, muito antes de todas as formas de entretenimento que conhecemos hoje.
7) The end
Em 1965, quando deixei minha Peruibe para estudar em São Paulo, embarquei no ônibus da Breda no bar Itatins, do seu Garcia, que funcionava como estação rodoviária e ao subir a Av.São João, virando à direita na padre Anchieta, ainda a mesma esquina empoeirada, avistei o prédio do cinema, acho que era Cine Castro ou Cine Peruibe, e foi uma das últimas lembranças arquitetônicas que se fixaram na minha mente. Jamais imaginaria que seria um símbolo para o resto da minha vida.
Nos anos 90, assistindo Cinema Paradiso, todas as lembranças voltaram e impossível não comparar a ficção com o que foi a nossa realidade, às vezes ilusória, comandada pelo inesquecível Chico Latim.
Obrigado, seu Chico Latim, o Oscar vai para o senhor. Parabéns.
Shogoro Sato.